sexta-feira, 19 de julho de 2013

Conto: Céu de passarinhos

Não sabia exatamente o que era aquilo. Uma sensação de estar sendo observada. Olhou em volta. Ninguém. Em certos momentos agradava-lhe estar só. Eram os momentos em que o pensamento voava.

Por todo lado, se espalhava a voz cheia e rascante de Louis Armstrong, com seu jeito bonachão, constatando mais uma vez a beleza deste mundo. 

Ouvia, também, secretamente, a voz do pai, que dizia — com a certeza que só os pais dão quando somos crianças — que, quando estamos absortos, com o olhar distante, o nosso pensamento voa para um lugar especial: o céu dos passarinhos. 

Era capaz de lembrar sua própria gargalhada, gostosa, naquele tempo em que ainda sabia sorrir de verdade, com a alma posta nos olhos, e a pronta resposta: “Você está mentindo para mim. Passarinho não tem céu. Só existe um céu”. 
A mãe intervinha sempre, com ar meio zangado: “Pare de ficar “enrolando” as crianças”. Assim, “elas nunca vão crescer”. Ao que ele ajuntava, bem baixinho: “Ela fica assim zangada porque nunca esteve lá”. E ela acreditava que gente que não sabia sorrir jamais veria o céu dos passarinhos.
Abriu a janela inconscientemente, buscando além daquele céu visível um outro, onde os pensamentos secretos habitam. Lá ela guardaria as suas lembranças todas. As da infância perdida e as outras, de ontem, de hoje, de sempre. 
No rosto, a lágrima desceu vagarosamente, percorrendo um caminho conhecido: o trajeto da saudade. Teria muita coisa para guardar no céu dos passarinhos: a lembrança do rosto dele, as duas covinhas que surgem quando ele sorri, aquelas mãos de menino, que se recusam a envelhecer, seu jeito silencioso de se movimentar, a voz em tom sussurrante ao seu ouvido, o olhar sério com o qual a fitava à medida que se aproximava a hora da partida...

Viver, agora, se resumia a um mergulho no universo do seu discurso, um beber contínuo da palavra escrita, na tentativa de recuperar a presença. Um discurso do qual queria ser parte. Uma palavra discreta, que passasse despercebida ao olhar intruso, mas constante, que fosse capaz de desvelar um mundo oculto e reorientar a vida. Pensou, com uma tristeza pungente, que há sempre lugar para poetas no céu dos passarinhos.

Fechou os olhos do corpo tentando alcançar com os olhos da alma o objeto da sua saudade. Muitas vezes dava certo. Era o seu olhar secreto, herança obscura, que a mantinha sempre com um pé em cada mundo. Conseguiria, se houvesse um campo aberto, se o pensamento dele estivesse de algum modo voltado para ela. Alcançou um momento fugaz de lembrança, uma réstia de mágoa por um beijo enviado e não retribuído. Outra lágrima fez companhia à primeira. Não conseguia ver mais nada. O círculo da visão se fechara. 
Havia algo na natureza de ambos que os unia: uma tristeza e insatisfação com a vida, uma incompreensão duramente sofrida desde cedo, uma sensação de que só a morte abrevia a dor. Eram dois espíritos semelhantes com histórias diversas, que vinham se buscando e se perdendo no continuum do tempo, com passos que se cruzavam e se separavam indefinidamente. Quantas vidas teriam de viver até o encontro definitivo? Não sabia. Talvez estivesse vivendo uma das histórias possíveis, em um dos mundos paralelos onde a vida dos homens se desenrola como obra aberta. Talvez estivesse na versão errada. Como descobrir? 
Queria trocar de lugar com o autor da vida por um breve instante. Tempo suficiente para escrever um final feliz, no qual guerreiros e poetas pudessem ficar para sempre com suas deusas e musas.

Pensou que no céu dos passarinhos precisaria haver sempre um simulacro de janela, aberta para um céu azul, com vasos de hortênsias artificiais no parapeito, a fim de que suas almas pudessem se debruçar no sonho e, de lá, observar a vida, como quem lê uma ficção escrita por um autor niilista.
Os ruídos do mundo a trouxeram de volta. A saudade continuou sem endereço. 


Shirley Carreira ©

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