quinta-feira, 25 de março de 2010

Como escrever poesia


Urge escrever poesia
Como quem colhe
A flor dos males alheios,
Os gestos, os entremeios
Da performance contida
Dos atores da vida.

Urge escrever poesia
Como quem sangra
Na pele o corte profundo
Dos dramas, das dores
Dos inimagináveis horrores
Que assolam o mundo.

Urge escrever poesia
Como um rio perene
Que deságua sempre voraz
Nas correntezas implacáveis
Redemoinhos instáveis
De um destino mordaz.

Urge escrever poesia
Como quem tece redes
De tramas largas, capaz
De trançar versos e esperança
Como um anjo criança
Que sonha e dorme em paz.

Shirley Carreira

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um momento

Um momento, não mais que um momento
É preciso para que do teu verso
Se faça um arco-íris de signos
Se crie uma multiplicidade de sons
Se pinte uma infinidade de imagens
Se transforme a vida em prazer.
Um momento, um único momento
Que desabrocha como flor
Que transcende o espaço e o tempo
Mostrando que o que há de mais belo,
De mais intenso, de mais constante
Reside em tudo o que se vive,
No que se apreende,
Em um único instante.

Shirley Carreira

Sobre as palavras

Não te abales com o ruir
Das minhas palavras,
Que ora voam como pombas singelas,
Ora desabam como chuva torrencial.
E não respondas, nem te importes,
Se te soam gritos, sussurros ou silêncios.
Cabe ao poeta gritar, murmurar e calar-se;
E fazer tudo isso na ordem contrária.
Sem amores desconexos e irrealizados
O que seria da poesia?
Não te impressiones com a aparente loucura
De quem explode e se recolhe
Como vulcão ou seca intermitente.
Quem sabe o que há na mente
De quem luta com palavras?
Não te importes, apenas leia.
Palavras são como folhas de outono
Que o vento leva; em abandono,
Se vão e não mais retornam.

Shirley Carreira

Poema do adeus


Teço a saudade
Que no peito não cabe
Como lágrima que deságua
Em temporal.
Guardo a imagem
Que da mente não parte
Como brisa que vira
Um vendaval.
Renuncio ao sonho
Que é apenas miragem
Como barco que afunda
Em região abissal.
Percorro os caminhos
De dor, estilhaçada,
Como imagem composta
Em fractal.
Digo um adeus mudo,
Absorta, contida,
Como espectro que paira
Sob a luz boreal;
Como sombra perene,
Como frágil alternativa
No brilho híbrido
do teu mundo ideal.

Shirley Carreira

Conversa de poetas em céu estrelado

Para Gustavo Schram


Falo-te em sonhos, murmuro versos
E me faço lembrança ao amanhecer.
Em pleno dia, sou sonho disperso
A desfazer-me em nada, a emudecer.

Minha voz se cala, perco a magia,
No decorrer do dia a agir
Mas volto a ser brisa e fantasia
Assim que a noite começa a cair.

Por isso, se vires no céu a brilhar
Uma estrela um tanto conhecida,
Com um brilho intenso a espraiar,
Derramando sonhos, dores incontidas

Segue-lhe o rastro, seu lamento escuta
Quando, em prata, segue para a luta
Devolvendo em lágrimas de chuva vertidas
Todos os rastros das batalhas perdidas.

E contar-te-ei em sonhos a sua saga
De lutas e derrotas, as poucas vitórias,
O contar será manso, como voz que afaga
Teu sono quieto com as muitas histórias.

E se teus versos os meus encontrarem
No firmamento, onde nunca irão fenecer,
Os belos diálogos que assim travarem
Serão os poemas que havemos de escrever.

Shirley Carreira

Partida




Partes, e na alma fica aberto
O espaço que te pertence;
E no rosto lágrimas que verto,
E no corpo o vazio de ti.
Partes, e na boca o gosto amargo
De perda infinita me arde,
E na noite um mundo sem sonhos,
Na vida um caminhar tristonho
Sem rumo, sem história,
Porque partes e de ti
Fica só a memória.

Shirley Carreira

terça-feira, 23 de março de 2010

Abismo


Entre nós
Abismos
De corpos e palavras.

Na boca
O amargo
Da sede do teu sexo.

Na mente
O verso
Contorcido do desejo.


Shirley Carreira

quinta-feira, 18 de março de 2010

Perdas e danos



Metade da minha vida
Gastei pensando
Na metade que queria
Ter gasto amando
E em cada pensamento
Proibido, profano,
Despendi um tempo insano.

Metade da minha vida
Gastei buscando
Uma porção de irrealidade,
Tolamente desprezando
A porção de verdade,
Perdendo, desta maneira,
Metade de uma vida inteira.

Nesta altura da vida,
Metade gasta, mal vivida
‘inda paira o medo atroz
Do desperdício contumaz ;
E, em cada minuto vivido,
Guardo a necessidade
De não perder nada mais.

Shirley Carreira

sexta-feira, 12 de março de 2010

Para que saibas que te amo



Para que saibas que te amo,
Não moverei montanhas,
Nem rasgarei as vestes,
Nem chorarei mil rios.
Para que saibas que te amo,
Guardarei apenas a saudade
Que só os grandes amores
Suportam e superam.

Para que saibas que te amo,
Deixarei que meu olhar te siga,
Que meu corpo te busque,
Que meus sonhos te tragam,
Nos tons, texturas e aromas
Que esse teu corpo encerra,
Para o meu mundo de densa
Quietude e espera.

Para que saibas que te amo,
Deixarei transparecer no olhar
Todas as paixões que me movem ,
Os desejos que nunca escondi.
Para que saibas que te amo,
Não hei de fazer promessas;
Dar-te-ei apenas a certeza
De estar sempre aqui.

Shirley Carreira

sábado, 6 de março de 2010

A mulher ideal





Tenho saudade
Da mulher que eu queria ser
Mulher de curvas perfeitas,
De mente desafiadora
E saberes aprofundados,
Com o mundo conhecido à frente
E um semideus ao lado.

Essa mulher ideal
Ficou lá no meu passado
Quando a estrada ‘inda era longa
E os dias infinitos,
A sua perfeição a gritar
Sempre nos meus ouvidos
O que eu deveria ter sido.

A mulher que vejo no espelho
Luta contra seus medos
E, bravamente, sobrevive
Às lutas do dia-a-dia,
Aos bloqueios na estrada
Da vida, que de glamour, de poesia
Tem muito pouco ou nada.

Gosto da imagem que vejo
Admito sem receio ou pejo.
Com sobras e faltas, eu lido,
A cada dia vivido,
Mas fica, no fundo, a saudade,
Que o tempo aplaca e diminui,
Da mulher que eu nunca fui.

Shirley Carreira

quinta-feira, 4 de março de 2010

Construções




Constrói-se, na ausência,
Eterna presença;
Em memória envolta,
Movida a saudade.

Constroem-se, no silêncio,
Diálogos mudos,
No espaço da lembrança,
No rastro da falta.

Constroem-se, à distância,
Desejos intensos,
Que pairam fortes, imensos,
Sobre o domínio da razão.

Shirley Carreira