sábado, 28 de agosto de 2010

O fio da poesia



Brada a voz do poeta;
Fio de silêncio
Costurando o tempo,
Bordando o ouro
Do sonho
Nas tramas rústicas
Da vida.

Sonha o poeta
Um sonho híbrido,
Em ânsia tecido.
Pontilha de estrelas
O céu negro
De todos
Os dias.

Entretece, entontece,
Fia e refina,
Entre pontos e vazio,
O fio da poesia.
Shirley Carreira

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sobre o homem e suas faces





Faz parte da natureza humana a capacidade de idealizar. Claro está que essa não é uma característica de todos os seres humanos. Há sempre aqueles indivíduos para quem a vida é um eterno jogo, em que as emoções alheias são apenas detalhes pequenos ante a sua vontade de vencer sempre.

No entanto, falo das pessoas normais, para quem os sentimentos ainda têm importância, para quem ter uma “alma” não é algo tão piegas, para quem o Outro ainda vale alguma coisa. Há nelas, com certeza, uma tendência a ver o mundo e as pessoas por um prisma que as torna melhor do que são. Ingênuas? Talvez, mas com uma qualidade ímpar: a de crer na integridade do homem.

Estamos vivendo uma época em que muito se discute sobre a alteridade, a significância de reconhecer e respeitar a diferença do Outro, de compreendê-la em sua conjuntura, mas pouco se faz além de um discurso. Basta um olhar em torno, para a condição miserável (e não me refiro aqui aos bens materiais) da espécie humana na sociedade contemporânea.

É neste contexto que encontramos alguns seres humanos ávidos do sentir, do fluir de emoções, do vivenciar algo que, às vezes, parece tão perdido quanto o elo que nos permite desvendar a nossa origem. Sua singularidade faz deles loucos, poetas, românticos, para quem este mundo há de parecer sempre território estrangeiro.

Aqueles para quem o sentimento de vitória, de superioridade e de controle orienta a vida hão de achá-los tolos, ridículos, risíveis.

Mas a vida é este emaranhado de encontros e desencontros, em que nem sempre se vence, nem sempre se conquista, nem sempre se ganha alguma coisa. Ainda que pareça ser o contrário, na visão daqueles que exercem sua ação manipuladora no meio em que vivem.

Talvez a diferença básica entre estes dois grupos de indivíduos é que quem já se convenceu de quem nem sempre se ganha, ergue-se, inteiro, sem perder seus valores, suas crenças, arriscando-se de novo a uma outra queda. Os que sempre ganham, se um dia caírem, não hão de levantar-se do chão, e se o fizerem serão motivados pelo mais torpe dos sentimentos: a vingança.
Essas duas faces do ser humano não são as únicas, pois ele é versátil o suficiente para transmutar-se em muitas outras; nem tampouco sua ação no mundo corresponde a uma visão maniqueísta do bem e do mal. São princípios de vida.

Creio no princípio do respeito ao Outro e se nem sempre ganho, se nem sempre consigo o que momentaneamente pode me trazer a alegria, eu trago em mim um outro bem, que é, talvez, o grande impulsionador da existência humana, a esperança.
Durmo um sono tranquilo, na certeza de que amanhã será outro dia e na esperança não de grandes vitórias, porque elas vêm em consequência de atos, condutas acertadas em momentos específicos, mas de que a experiência que virá, decerto, há de proporcionar-me uma melhoria como ser humano, que me permitirá ver nas pequenas alegrias de todos os dias o verdadeiro sentido da vida.

domingo, 22 de agosto de 2010

Permissão

Permito a invasão da tua imagem
Audaciosa, a adentrar a existência
De um mundo quieto de palavras;
A sua presença e transparência
Feitas revelação e segredo.
Emoção vagando em degredo;
Desejo construído em miragem.

Permito a insolência dos teus gestos
A roubar a paz do meu silêncio;
A soprar os ventos de voragem
Onde havia estática paisagem,
Prosaicos sentimentos manifestos;
A trazer tornados e viração
Onde havia plácida ordenação.

Permito-me mirar caudalosamente
Essa tua imagem fugaz, indiferente,
Sem rastros, descuidada, veloz;
Desastre e paraíso, se os dois
Pudessem ser só um, e depois
Findassem, à luz dos arrebóis.

Shirley Carreira

Passagem




Não te faço
Matéria única
De minha
Existência múltipla;
Nem eu mesma
Tenho posse
Da vastidão
De meus segredos.

Não te creio
Senhor absoluto
Da minha
Vontade saltitante;
Se hoje sou
O que ontem não fui
Se me transformo
A cada instante.

Não te imagino
Presença perpétua
No sonho
E no pensamento;
Vejo-te apenas
Como traço impreciso
Do lúdico Autor
Que te inscreveu
Neste momento.

Shirley Carreira

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Leitura final

Poema de Fernando Pinto Ribeiro

a Elsa Rodrigues dos Santos
e a Figueiredo Sobral


na bruma que me esfuma
rua em rua
fonema por fonema
– leio a lua
plena
do poema

nua flutua
suprema
verso após verso
– veio
que eu me entreteço
imerso
diadema

larva de palavras
falena
verbo de verbenas
– me enleio
hibernal
coral num colar
a aureolar avenas

... e ao espelho lunar
do sol seminal
espasmo de açucenas
– soltei-o
além mar
num ponto-final
a()penas


28Abr.07

sábado, 14 de agosto de 2010

Figueiredo Sobral- um adeus




Faleceu ontem, em Lisboa, o pintor, escultor e poeta Figueiredo Sobral. Deixa uma lacuna no panorama das artes portuguesas. Expresso aqui o meu pesar e a minha admiração profunda pelo grande artista que ele foi.

Lembranças


Lembranças
Pombas brancas em vôo constante
Vão e vêm sobre o presente
E por mais que se ande adiante
Estão sempre presas à mente.

Sua passagem diáfana
Quase sempre em saudade se faz
Vívidos momentos reacendem
Ora com dor, ora com paz,
E muitas vezes surpreendem.

Que venham as lembranças
E que tragam a memória
Do que de belo foi um dia vivido
A doce parte de uma história
O que não deve ser esquecido.

E se ficar, ao final, nostalgia
Do que não mais há de se ter,
Há de acompanhá-la a magia
Do caminho à frente
Do que ainda há por viver.

Shirley Carreira

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Voo

Vago, taciturna,
Entre o “talvez” e o “se”.
Vago, ave noturna,
Que voa para não sei onde,
Sem saber o porquê.

Na máquina, emperrada,
Deste mundo fechado,
Sou mais uma ave
A fazer revoada
Em trajeto ignorado.

Em um breve, inesperado,
Momento de revelação,
Vislumbro um mundo
Que nunca chegou a sê-lo,
Silenciosa, voo,
E desisto de entendê-lo.

sábado, 7 de agosto de 2010

Uma espera em movimento

Poema dedicado a um grande amigo, após uma longa conversa sobre suas esperas na vida.

O tempo em que vivo,
inscrito na história,
pautado em lembranças
e no momento presente;
é o que aprisiona,
que traz na memória
sentimento profundo
que não mais se sente.

Do passado, rastros e traços
a ferro marcados no pensamento.
No presente, a esperada surpresa,
a doação e a leveza,
a doçura e a loucura
de umanova paixão,
que me mova e entonteça,
que me arrebate e enlouqueça
e faça disparar o coração.

O tempo em que vivo
é tempo de espera,
mas não de imobilidade
ou completa inação.
É o tempo da vida, de fluxo e refluxo;
é o tempo do encanto,
de busca e sedução.

O tempo em que vivo
é aquele que invento:
tempo de espera
em movimento.

Shirley Carreira
13.12.2005

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tecendo palavras

Posso dizer que te amo
Indefinidamente
Como um canto
De pássaro incandescente
Que invade
O silêncio das manhãs
Ainda nascentes.


Posso falar de amor
Ensandecidamente
Como cativa
Do teu olhar e sedução
Escrava assumida
Do desejo incontido
E da paixão.

Posso perder-me
Eternamente
Nos traços definidos
Desse teu corpo ardente
Que me prende
Com invisíveis correntes
Em turbilhão.

Só não posso
Fugir desse teu ardor vadio
Que me mantém presa,
Vício, sabor e cio,
E me invade
Fazendo de cada instante
Eternidade.