Não sabia exatamente o que era aquilo. Uma sensação de estar
sendo observada. Olhou em volta. Ninguém. Em certos momentos agradava-lhe estar
só. Eram os momentos em que o pensamento voava.
Por todo lado, se espalhava a voz cheia e rascante de Louis Armstrong, com seu jeito bonachão, constatando mais uma vez a beleza deste mundo.
Por todo lado, se espalhava a voz cheia e rascante de Louis Armstrong, com seu jeito bonachão, constatando mais uma vez a beleza deste mundo.
Ouvia, também, secretamente, a voz do pai, que dizia — com a certeza que só os pais dão quando somos crianças — que, quando estamos absortos, com o olhar distante, o nosso pensamento voa para um lugar especial: o céu dos passarinhos.
Era capaz de lembrar sua própria gargalhada, gostosa, naquele tempo em que ainda sabia sorrir de verdade, com a alma posta nos olhos, e a pronta resposta: “Você está mentindo para mim. Passarinho não tem céu. Só existe um céu”.
A mãe intervinha sempre, com ar meio zangado: “Pare de ficar
“enrolando” as crianças”. Assim, “elas nunca vão crescer”. Ao que ele ajuntava,
bem baixinho: “Ela fica assim zangada porque nunca esteve lá”. E ela acreditava
que gente que não sabia sorrir jamais veria o céu dos passarinhos.
Abriu a janela inconscientemente, buscando além daquele céu
visível um outro, onde os pensamentos secretos habitam. Lá ela guardaria as
suas lembranças todas. As da infância perdida e as outras, de ontem, de hoje,
de sempre.
No rosto, a lágrima desceu vagarosamente, percorrendo um
caminho conhecido: o trajeto da saudade. Teria muita coisa para guardar no céu
dos passarinhos: a lembrança do rosto dele, as duas covinhas que surgem quando
ele sorri, aquelas mãos de menino, que se recusam a envelhecer, seu jeito
silencioso de se movimentar, a voz em tom sussurrante ao seu ouvido, o olhar
sério com o qual a fitava à medida que se aproximava a hora da partida...
Viver, agora, se resumia a um mergulho no universo do seu discurso, um beber contínuo da palavra escrita, na tentativa de recuperar a presença. Um discurso do qual queria ser parte. Uma palavra discreta, que passasse despercebida ao olhar intruso, mas constante, que fosse capaz de desvelar um mundo oculto e reorientar a vida. Pensou, com uma tristeza pungente, que há sempre lugar para poetas no céu dos passarinhos.
Fechou os olhos do corpo tentando alcançar com os olhos da alma o objeto da sua saudade. Muitas vezes dava certo. Era o seu olhar secreto, herança obscura, que a mantinha sempre com um pé em cada mundo. Conseguiria, se houvesse um campo aberto, se o pensamento dele estivesse de algum modo voltado para ela. Alcançou um momento fugaz de lembrança, uma réstia de mágoa por um beijo enviado e não retribuído. Outra lágrima fez companhia à primeira. Não conseguia ver mais nada. O círculo da visão se fechara.
Viver, agora, se resumia a um mergulho no universo do seu discurso, um beber contínuo da palavra escrita, na tentativa de recuperar a presença. Um discurso do qual queria ser parte. Uma palavra discreta, que passasse despercebida ao olhar intruso, mas constante, que fosse capaz de desvelar um mundo oculto e reorientar a vida. Pensou, com uma tristeza pungente, que há sempre lugar para poetas no céu dos passarinhos.
Fechou os olhos do corpo tentando alcançar com os olhos da alma o objeto da sua saudade. Muitas vezes dava certo. Era o seu olhar secreto, herança obscura, que a mantinha sempre com um pé em cada mundo. Conseguiria, se houvesse um campo aberto, se o pensamento dele estivesse de algum modo voltado para ela. Alcançou um momento fugaz de lembrança, uma réstia de mágoa por um beijo enviado e não retribuído. Outra lágrima fez companhia à primeira. Não conseguia ver mais nada. O círculo da visão se fechara.
Havia algo na natureza de ambos que os unia: uma tristeza e
insatisfação com a vida, uma incompreensão duramente sofrida desde cedo, uma
sensação de que só a morte abrevia a dor. Eram dois espíritos semelhantes com
histórias diversas, que vinham se buscando e se perdendo no continuum do tempo,
com passos que se cruzavam e se separavam indefinidamente. Quantas vidas teriam
de viver até o encontro definitivo? Não sabia. Talvez estivesse vivendo uma das
histórias possíveis, em um dos mundos paralelos onde a vida dos homens se
desenrola como obra aberta. Talvez estivesse na versão errada. Como descobrir?
Queria trocar de lugar com o autor da vida por um breve
instante. Tempo suficiente para escrever um final feliz, no qual guerreiros e
poetas pudessem ficar para sempre com suas deusas e musas.
Pensou que no céu dos passarinhos precisaria haver sempre um simulacro de janela, aberta para um céu azul, com vasos de hortênsias artificiais no parapeito, a fim de que suas almas pudessem se debruçar no sonho e, de lá, observar a vida, como quem lê uma ficção escrita por um autor niilista.
Pensou que no céu dos passarinhos precisaria haver sempre um simulacro de janela, aberta para um céu azul, com vasos de hortênsias artificiais no parapeito, a fim de que suas almas pudessem se debruçar no sonho e, de lá, observar a vida, como quem lê uma ficção escrita por um autor niilista.
Os ruídos do mundo a trouxeram de volta. A saudade continuou
sem endereço.
Shirley Carreira ©
Nenhum comentário:
Postar um comentário