sábado, 2 de novembro de 2013

Tessitura



Quando me aposso
Da palavra,
Domo o tempo,
Teço
Insuspeitadas estradas;

Quando teço discursos
Em silêncio,
Faço história;
Tranço
Extensas meadas;

do fio inquieto da vida,
me apodero,
lanço ao futuro
as redes
em verbo trançadas.


Shirley Carreira

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Me


domingo, 20 de outubro de 2013

Criação e criatura


Quando me sinto assim,
Tão loucamente
Ausente de mim,
Ultrapasso meus medos,
Devasso os segredos
Que a alma esconde.

Ponho os olhos onde
A vista nem mais alcança,
Transmuto a alma em criança,
Viro as normas do avesso,
Faço do fim começo,
Torno cada mar em porto.

Se é o caminho reto ou torto
Pouco importa, se amanheço
Com este viés de loucura.
Busco o verso perdido,
Traço a palavra pura
Que pinta meu eu dividido.

E me inscrevo, verso e pintura,
Num roteiro jamais vivido.


©Shirley Carreira


domingo, 8 de setembro de 2013

A ilha interior

Dentro de mim há uma ilha inexplorada;
rochedos densos e altaneiros,
inexpugnáveis.
Acariciam-lhes as brumas das frias manhãs
e as revoltosas águas
do mundo exterior.
No cume do mais alto rochedo,
habita a águia dos meus sonhos,
sempre disposta a alçar voo
rumo ao espaço infinito.

Shirley Carreira


sábado, 7 de setembro de 2013

6 de setembro de 2013


sábado, 31 de agosto de 2013

Do tempo de agora

Sei que não sou
Deste espaço, deste tempo. 
Sei que ando a juntar
Os esparsos 
Fragmentos de mim.
Sei que enquanto 
A mente vagueia inteira,
O corpo é prisioneiro
Do agora. Tudo tem fim.
E se me parece tão bela,
Tão longa a estrada,
E se ainda me ponho a sonhar
De modo irrestrito,
Algo me lembra
Do tempo de agora,
Que torna todo sonho
Curto, irreal, finito.

Shirley Carreira


terça-feira, 23 de julho de 2013

Quando me escondo de mim


Quando me escondo de mim,
Tenho um semblante suave,
Uma plumagem de ave
Encantada com sua imagem.

Quando me escondo de mim,
Tenho uma fala macia
Que soa , ao raiar do dia,
Como canto de passarinho.

Quando me escondo de mim,
Trago nos lábios o rubor
Das grandes paixões e o sabor
Dos desejos juvenis.

Quando eu me escondo de mim,
Não tenho este olhar triste,
Nem este gesto agreste
De quem com a vida esgrima.

Quando me escondo, domo,
Na raiz, a palavra incerta
Que eclode e desperta
A vida, sem rumo ou rima.


Shirley Carreira


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Conto: Céu de passarinhos

Não sabia exatamente o que era aquilo. Uma sensação de estar sendo observada. Olhou em volta. Ninguém. Em certos momentos agradava-lhe estar só. Eram os momentos em que o pensamento voava.

Por todo lado, se espalhava a voz cheia e rascante de Louis Armstrong, com seu jeito bonachão, constatando mais uma vez a beleza deste mundo. 

Ouvia, também, secretamente, a voz do pai, que dizia — com a certeza que só os pais dão quando somos crianças — que, quando estamos absortos, com o olhar distante, o nosso pensamento voa para um lugar especial: o céu dos passarinhos. 

Era capaz de lembrar sua própria gargalhada, gostosa, naquele tempo em que ainda sabia sorrir de verdade, com a alma posta nos olhos, e a pronta resposta: “Você está mentindo para mim. Passarinho não tem céu. Só existe um céu”. 
A mãe intervinha sempre, com ar meio zangado: “Pare de ficar “enrolando” as crianças”. Assim, “elas nunca vão crescer”. Ao que ele ajuntava, bem baixinho: “Ela fica assim zangada porque nunca esteve lá”. E ela acreditava que gente que não sabia sorrir jamais veria o céu dos passarinhos.
Abriu a janela inconscientemente, buscando além daquele céu visível um outro, onde os pensamentos secretos habitam. Lá ela guardaria as suas lembranças todas. As da infância perdida e as outras, de ontem, de hoje, de sempre. 
No rosto, a lágrima desceu vagarosamente, percorrendo um caminho conhecido: o trajeto da saudade. Teria muita coisa para guardar no céu dos passarinhos: a lembrança do rosto dele, as duas covinhas que surgem quando ele sorri, aquelas mãos de menino, que se recusam a envelhecer, seu jeito silencioso de se movimentar, a voz em tom sussurrante ao seu ouvido, o olhar sério com o qual a fitava à medida que se aproximava a hora da partida...

Viver, agora, se resumia a um mergulho no universo do seu discurso, um beber contínuo da palavra escrita, na tentativa de recuperar a presença. Um discurso do qual queria ser parte. Uma palavra discreta, que passasse despercebida ao olhar intruso, mas constante, que fosse capaz de desvelar um mundo oculto e reorientar a vida. Pensou, com uma tristeza pungente, que há sempre lugar para poetas no céu dos passarinhos.

Fechou os olhos do corpo tentando alcançar com os olhos da alma o objeto da sua saudade. Muitas vezes dava certo. Era o seu olhar secreto, herança obscura, que a mantinha sempre com um pé em cada mundo. Conseguiria, se houvesse um campo aberto, se o pensamento dele estivesse de algum modo voltado para ela. Alcançou um momento fugaz de lembrança, uma réstia de mágoa por um beijo enviado e não retribuído. Outra lágrima fez companhia à primeira. Não conseguia ver mais nada. O círculo da visão se fechara. 
Havia algo na natureza de ambos que os unia: uma tristeza e insatisfação com a vida, uma incompreensão duramente sofrida desde cedo, uma sensação de que só a morte abrevia a dor. Eram dois espíritos semelhantes com histórias diversas, que vinham se buscando e se perdendo no continuum do tempo, com passos que se cruzavam e se separavam indefinidamente. Quantas vidas teriam de viver até o encontro definitivo? Não sabia. Talvez estivesse vivendo uma das histórias possíveis, em um dos mundos paralelos onde a vida dos homens se desenrola como obra aberta. Talvez estivesse na versão errada. Como descobrir? 
Queria trocar de lugar com o autor da vida por um breve instante. Tempo suficiente para escrever um final feliz, no qual guerreiros e poetas pudessem ficar para sempre com suas deusas e musas.

Pensou que no céu dos passarinhos precisaria haver sempre um simulacro de janela, aberta para um céu azul, com vasos de hortênsias artificiais no parapeito, a fim de que suas almas pudessem se debruçar no sonho e, de lá, observar a vida, como quem lê uma ficção escrita por um autor niilista.
Os ruídos do mundo a trouxeram de volta. A saudade continuou sem endereço. 


Shirley Carreira ©

domingo, 14 de julho de 2013

O poema que me fala à alma


O poema que me fala à alma
Não é um exercício de linguagem,
Mas sobrevive à voragem
Da mera experimentação.

O poema que me fala à alma
Não é um mosaico de ideias,
Que se sobrepõem desconexas,
Mas um fluxo de emoção

O poema que me fala à alma,
Do signo, ultrapassa a fronteira;
Na vida, profundo, se inscreve,
Rítmico, melodioso, leve.

O poema que me fala à alma
É o que me traz infinito prazer,
É o aquele que, sutil, me narra,
Sem que eu venha a perceber.


Shirley Carreira